Artigo: Juventudes indígenas: desafios e potências ancestrais

Juventudes indígenas: desafios e potências ancestrais

Como grande parte das pessoas no Brasil, cresci ouvindo que o dia 19 de abril era o famigerado “Dia do Índio”. Na escola essa era a típica data em que pintávamos desenhos com figuras de pessoas indígenas, com base em estereótipos e um olhar bastante redutor da complexidade que envolve essa parte da população. Com uma relação tão distante e permeada de premissas mais folclóricas do que sociais e históricas, muitas vezes o que temos perpetuado contra povos indígenas é justamente um processo de apagamento concreto e simbólico de suas existências. 

Apenas ao longo dos últimos anos tive a oportunidade de me aproximar de maneira mais cuidadosa e real de pessoas indígenas e suas lutas. Hoje durante o mês de abril busco acompanhar as movimentações que ocorrem em todo o país, partindo de povos de diferentes regiões e etnias, como o Acampamento Terra Livre transcorrido em Brasília anualmente há 18 anos e suas reverberações pelas redes. Um constante exercício de escuta e atenção que todes nós pessoas não-indígenas podemos e devemos cotidianamente praticar, em respeito aos povos originários do território que partilhamos. 

Nessa direção, imaginei que essa coluna escrita durante o mês marcado pelas lutas de povos indígenas não poderia abordar outro tema senão as juventudes indígenas, seus desafios e potências. Um dado estarrecedor que ouvi há tempos atrás continua me chocando: a taxa de suicídio entre pessoas indígenas no território brasileiro é três vezes maior do que a média nacional, sendo que quase 50% desses óbitos ocorrem entre crianças e adolescentes de 10 a 19 anos, de acordo com o Centro de Valorização da Vida. 

Esse dado e acontecimentos recentes como a morte de crianças Yanomami engolidas por dragas do garimpo em Roraima ou, também no Amazonas, ainda em território Yanomami onde ao menos três pré-adolescentes indígenas de 13 anos morreram depois de serem estupradas por garimpeiros que as embriagaram. São todos fatos assombrosos que demonstram a dramaticidade envolvida nos processos de garantia à plenitude de direitos mínimos às populações indígenas, desde a infância e a adolescência. 

É doloroso escrever sobre esses dados e imaginar a aura de medo e incerteza sobre a qual esses povos vivem em seus respectivos territórios e contextos. Porém é também necessário evidenciar as tão cruciais e relevantes movimentações que são feitas por esses mesmos grupos em resistência às violências tremendas que o Brasil propícia aos povos originários desde que passou a se chamar assim.  

Tenho a feliz oportunidade de compartilhar redes e espaços com jovens indígenas no meu cotidiano, em contextos urbanos e aldeados. Pessoas que me inspiram infinitamente e que posso chamar de amigas, algumas das quais convidei a responderem duas questões que suleiam essa coluna, como de costume: (1) Quais os principais desafios das juventudes indígenas que você observa hoje? E no que toca seu território e seu povo especificamente? e (2) Quais as maiores potências das juventudes indígenas que você observa? 

Com base nessas perguntas recebi respostas valiosas que compartilho de maneira íntegra com vocês a seguir, abrindo nosso espaço de escuta coletiva e aprendizado. Qual foi a última vez em que você parou para escutar uma pessoa jovem indígena? Convido sua leitura atenta do que essas vozes urgentes têm a dizer. 

Anne, estudante de Ciências Sociais de 24 anos, natural de Limoeiro, agreste de Pernambuco, é uma brilhante roteirista e pesquisadora em processo de retomada de sua identidade como jovem indígena. Ela me conta: 

“Os principais desafios tem as respostas óbvias, né? Racismo, etnocídio, violência, apagamento, a perseguição pelo território. A gente pode falar do governo atual, como se todas as mazelas tivessem começado com o Bolsonaro, mas na verdade estão aqui desde que o Brasil é Brasil.  

Acho que um dos principais desafios da juventude indígena atualmente, por mais clichê que isso vá soar é se manter vivo e não só vivo de ‘estou vivo respirando’, mas vivo de forma digna, justa, sabe? Vivo sendo quem é, podendo afirmar quem é sem correr riscos, podendo viver no próprio território, podendo acessar diferentes espaços sem ter essa cobrança para que outras partes do que somos sejam anuladas, para que a gente se enquadre num mito folclórico do que é ser ‘índio’. Ou então sem que a gente precise negar que somos indígenas, para que outras partes de nós sejam respeitadas e para que nossa própria identidade não seja constantemente violentada, embora a negação das identidades já seja em si uma violência. A luta pelo território acho que é um dos principais desafios, no momento de um governo como esse, com tantos desmontes. Não que os governos anteriores a gente não tivesse que lidar com essa questão territorial e identitária e etc. Tivemos ai 12 anos de um governo do PT e quantas terras indígenas foram demarcadas?! Mas o governo atual com projetos tão explícitos e tão abertamente anti-indígenas, não tem quem não veja o desafio. Há pessoas que escolhem não ver, escolhem não se importar, mas está escancarado que estamos enfrentando um governo aberta e explicitamente anti-indígena, com projetos como o PL 490 e outros, os PL’s da grilagem. Então esse ataque direto ao território indígena, ao direito ao território afeta muito os jovens. Não à toa no Brasil, a parcela da população que mais se suicida são indígenas jovens, primeiro homens, depois mulheres, mas indígenas jovens, idosos também. Mas somos um país com uma taxa de suicídio muito intenso dentro da juventude indígena, assim como a juventude negra também. Então acho que um dos principais desafios da juventude indígena hoje é o mesmo de há 522 anos: se manter vivo” (Anne, 24) 

A imagem mostra uma jovem indígena

Na direção das potências, Anne nos diz sobre aspectos da ancestralidade que fortificam as lutas indígenas intergeracionalmente: 

“Sem sombra de dúvida, a principal potência eu acho que é quem veio antes, é o legado de quem veio antes, olhar para quem veio antes da gente e lutou muito para que a gente tivesse aqui. Porque uma das partes muito importantes de ser indígena e como a gente se entende, como a gente se relaciona com o mundo, com as nossas identidades, com os outros, é o reconhecimento e a valorização dessa percepção de que eu sô tô aqui hoje porque os meus ancestrais vieram antes de mim pavilhando esse caminho. A única coisa que a gente herda quando a gente nasce indígena é a luta, que é a mesma coisa que se herda quando se nasce negro nesse país. Então eu acho que uma das nossas principais potências, uma das nossas principais fontes de força é justamente olhar pros nossos mais velhos, olhar para luta deles, sabe? Para tudo que eles passaram para que a gente pudesse estar aqui hoje, se afirmando indígena. Para que a gente pudesse estar aqui hoje, no caso de indígenas como eu retomando essa identidade, na busca por esse pertencimento, pelo resgate dessa ancestralidade que foi roubada, que foi apagada, que foi impedida que a gente acessasse pelo Estado. O Estado impediu que minha avó, meu avô, meus avós se afirmassem indígenas, se entendessem como indígenas. Então eu acho que vem deles, a nossa principal força vem disso, da relação com quem veio antes, da relação com a nossa família, com os nossos mais velhos, com o nosso sagrado, com o nosso território, sem sombra de dúvidas. Nós somos a extensão da terra, nós somos extensão do nosso território, território é identidade. Então vem disso. Pelo menos falando por mim, é daí que eu tiro forças, para tudo, para minha vida, para minhas lutas pessoais e também principalmente para essas lutas coletivas, pelo que eu acredito, pela defesa dos nossos povos. Vem desse lugar realmente, sabe? 

Quando eu olho agora com 22 anos e vejo o Cacique Raoni, vejo o Cacique Marquinhos Xucuru, vejo a Sônia Guajajara, principalmente o Cacique Raoni, o Davi Kopenawa, o Ailton Krenak que já estão numa idade bem avançada, mas que continuam firme, continuam lutando, sabe? O que é foda e ao mesmo tempo é injusto. Porque eles deveriam ter o direito de estarem envelhecendo de forma segura, de forma saudável, sabe? De poder descansar, mas simplesmente não há descanso, não há paz, né? Como diz o próprio Ailton Krenak estamos em guerra, estamos constantemente em guerra, então acho que infelizmente se faz necessário tirar forças dessas dores e dessa ausência de possibilidade de descanso, dessa ausência de segurança, sabe? E da luta de quem veio antes e que ainda está ai até hoje lutando pelos nossos povos, pelo menos na minha percepção, no meu ponto de vista, eu sempre tento tirar forças disso assim. Não só dessas figuras que eu falei, mas também de quem está perto de mim. Dos meus avós, dos meus pais, da minha mãe especificamente. Vem muito desse lugar de entender que eu só estou aqui nesse lugar de entender quem eu sou, ainda que com muitos percalços no caminho por causa de tudo que eles precisaram infelizmente suportar e tudo que eles lutaram e enfrentaram para que eu tivesse aqui. Então isso me dá gás, sabe? Isso alimenta a minha força. Isso me torna mais potente para ir em frente. E isso não é um discurso de ‘nossa, a dor me fez melhor’, de forma alguma. Mas é no sentido de que infelizmente a gente passou por essas coisas e a gente ainda está passando por muitas. Então olhar para essas pessoas, olhar para quem veio antes é o que me mantém de pé muitas vezes. 

Para, além disso, eu acho que também tem a questão do encontro. Por exemplo, hoje a gente tem internet, minha geração tem internet então eu conheço parentes de várias outras partes do país e de outros países que eu não conheceria se não fosse a internet. E daí nesse encontro com essas pessoas, as nossas narrativas, as nossas histórias, as nossas vivências se cruza, se complementam e isso potencializa a nossa luta, potencializa a nossa existência, sabe? Porque eu realmente acredito que a gente fica mais forte e mais firme no encontro com o outro no qual a gente se reconhece. E é isso basicamente. Tem um autor indígena que eu gosto muito chamado Tommy Orange, ele é estadunidense, tem um livro dele chamado ‘Lá não existe lá’ e em determinado trecho desse livro ele fala ‘Nós somos o que nossos ancestrais fizeram, como sobreviveram, somos as memórias de que não conseguimos nos lembrar’. E eu acho que é sobre isso, tanto o que eu falei antes que é tirar forças da história, do legado de quem veio antes de nós, quanto no sentido desse encontro mesmo com outros parentes que faz com que a gente se reconheça, com a que a gente se perceba, com que a gente se sinta mais firme para abrir a boca e dizer ‘Eu sou indígena sim’. E a minha história não é tão diferente, existem outras pessoas por ai parecidas comigo, existem outros rostos por ai parecidos com o meu. Isso é muito potente e o modo também como a minha geração tem usado a internet para levar certos temas para pessoas que antes não se atentariam para isso, não acessariam isso. Os debates que acontecem no âmbito virtual, embora não devam de forma alguma ficar só nesse âmbito claro, mas o que acontece ali acaba chegando em pessoas que a gente não acessaria realmente. Essa questão, não se atentariam sobre o que os nossos povos ainda estão enfrentando. Sobre o fato de que existimos, sabe? Estamos vivos. 2022 no Brasil ainda existe indígena, porque o Brasil inteiro é terra indígena não-demarcada” (Anne, 24) 

Conversei também com Clara Gentil de 17 anos, jovem estudante e ambientalista idealizadora do projeto “Plantar um Mundo Melhor”, indígena do povo Borari, às margens do Rio Tapajós. Quando faço as duas perguntas, a Jovem Transformadora Ashoka me responde: 

“Ainda observo muito racismo e a falta de representativade de lideranças femininas em espaços de debates. Eu observei essa semana, na semana dos povos indígenas e da nossa luta, né? E ainda vejo muito racismo, tanto das pessoas, nos olhares assim. Porque a gente fez nossas pinturas indígenas, fizemos grafismos e tudo mais para representar nosso povo, o que foi dado de herança para nós, dos nossos povos. É uma coisa que foi passada para gente, de gerações por gerações. Então a gente merece respeito por isso, merecer ser respeitado, não criticado, não com olhares maldosos. Porque a maioria das pessoas não entendem o que isso significa para nós e olham a gente como se fossem pessoas totalmente diferentes e não tivéssemos lugar aqui. Mas a gente merece respeito e ser respeitado. Então isso é uma das grandes causas aqui que ainda me ofende muito, me deixa triste porque é uma coisa que foi deixada para nós e é uma coisa que tem que ser respeitada e não julgada. Esse é um dos maiores desafios que a juventude ainda passa aqui” (Clara, 17) 

Ao falar sobre potências: 

“Estou observando muito a juventude indígena com projetos inovadores, com formações de lideranças, formação de uma juventude que se importa com a sua tradição, a sua cultura. E estão ali lutando pelo seu território, lutando pelo que acredita e é isso que a gente precisa, de uma juventude que mostra que temos voz, que mostra que estamos ali lutando pelo que acreditamos, estamos lutando pelos que vieram e vamos lutar pelos que virão. Então nossa, esse dia é muito importante para falar sobre a nossa luta dos povos indígenas, o dia 19 de abril. Então é um dia onde a gente está ali, não é só o dia 19 que é o Dia dos Povos Indígenas, mas sim todos os dias, a gente está ali todos os dias lutando pelo que a gente está acreditando, lutando por uma igualdade, lutando por respeito, pelas nossas tradições. Respeito pela nossa cultura e respeito por nós mesmos. Porque nós não somos incomuns, somos pessoas também, somos de carne e osso, também sangramos e também choramos pela nossa vida, choramos pelo que está acontecendo nos nossos territórios, choramos por tudo que estamos passando. E nós nos importamos com a nossa Amazônia como povos originários dessa terra e não abrimos mão disso” (Clara, 17) 

Por fim, conversei também com Henrique Ferreira, ativista e socioambientalista de 22 anos residente de uma comunidade ribeirinha na Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns de Santarém (PA). Henrique que é também Jovem Transformador Ashoka e líder comunitário atuante na defesa dos povos da floresta, indígena em processo de reencontro com seu povo. Pensando sua vivência dentro do território amazônico, intersecções das lutas indígenas com a defesa do planeta, ele nos conta: 

“Dentro dos territórios indígenas, dentro da Amazônia são vários os desafios que nós como jovens encontramos. Desde a vivência na aldeia, desde a vivência na comunidade, de ter uma educação digna, uma educação de qualidade, onde a gente possa permanecer estudante na comunidade sem ter que sair do nosso território para poder estar trabalhando e alcançando outros espaços. Sem contar também a questão do aliciamento juvenil, porque muitas vezes o jovem tem que sair do seu território por conta de trabalho, por conta de emprego. Então a gente não tem muito essa oportunidade de permanecer na comunidade, na aldeia, em relação à educação. Outros desafios também que nós enfrentamos são os que todos conhecem, o mundo conhece, mas a gente ainda fica à mercê disso, que são os perigos que o desenvolvimento traz em relação às madeireiras, em relação às mineradoras, em relação às hidroelétricas. Os desafios que a gente encontra de manter nosso território protegido, de manter nosso território com a floresta em pé, para deixar pros nossos descendentes, para deixar para quem vem depois de nós e também para fazer com que haja vida na Terra, no mundo.Porque a nossa luta aqui, ela gera impacto não só para gente, mas do outro lado do mundo e também numa vida terrestre. Então nossa luta como amazônidas, permanecendo, vivendo aqui na Amazônia é pensando também no futuro da nossa humanidade, das nossas gerações, dos nossos filhos, dos nossos sobrinhos, mas também de quem está do outro lado do mundo. Pensando aquelas pessoas que já tiveram a floresta do seu território devastado e o quanto que elas podem ser beneficiadas se nós aqui resistirmos e se nós permanecermos com o nosso território protegido, com as nossas florestas de pé” (Henrique, 22) 

“Hoje nesse cenário de luta, nesse cenário de embate, de jovens indígenas que levam a nossa voz enquanto militantes, enquanto amazônidas, enquanto pessoas que protegem o território, nós vemos vários jovens que são inspiração para gente, sabe? Vou citar alguns que são Val Munduruku que é uma jovem do povo Munduruku, ela é uma jovem muito assídua na sua luta, porque ela veio da aldeia e ela sabe as dificuldades. Todos nós sabemos aqui as nossas dificuldades e o que a gente vive. Então nada melhor do que ouvir esses jovens, essas lideranças, esses ativistas que vivem, que sentem na pele o que é a dor. Então eu tenho a Val Munduruku como uma grande referência hoje no cenário nacional. Assim também como a Alice Pataxó que também é uma jovem que está no embate, que leva a voz do jovem indígena, do jovem que está preocupado com o futuro, do jovem que está preocupado com o agora. Então a gente tem ai essas pessoas e tantas outras também. Cristian Wariu que é um comunicador, ele consegue através de redes sociais, da sua comunicação expressar a dor do jovem indígena, das populações indígenas, dos povos indígenas comunicando tudo aquilo, todas as nossas dores, todas as nossas lutas e tudo aquilo que a gente quer alcançar. Então vários outros jovens, Txai Suruí que é uma líder indígena também muito importante que pauta questões juvenis, que pauta questões climáticas, ambientais em sua fala, em sua luta. E que estão na ponta da lança contra a morte dos povos, contra as PL’s que estão a ser votadas, contra o nosso povo, que matam o nosso povo, que desfazem todos nossos direitos. Esses jovens indígenas estão ai lutando para que haja a manutenção dos nossos direitos e a manutenção da floresta em pé”. (Henrique, 22)