Justiça climática e democracia racial
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Um desafio ao discutir as questões ambientais e ecológicas é recuperar sua conexão com o mundo social. Passamos muito tempo afastando nosso passado, presente e futuro da natureza, afirmando nosso direito de usufruir e subordinar o planeta e toda a vida nele contida. Esta primeira fratura da nossa espécie com o mundo somou-se a outras fraturas que estabeleceram as diferenças que criaram uma pirâmide de desigualdades no mundo social, assim, raça, etnia, gênero, origem territorial, classe, geração passaram a ser marcadores sociais que explicam o acesso desigual aos recursos no mundo.
Mulheres e jovens, pessoas negras, povos originários e comunidades tradicionais vêm afirmando a urgência de uma ética ambiental de justiça que reconheça a finitude dos recursos naturais, estabeleça a necessidade de acesso equitativo e sustentável aos bens comuns, como nossas florestas e mananciais, enfrente as desigualdades sociais, promova modelos sustentáveis de produção de alimentos, proteja e afirme os conhecimentos tradicionais e as tecnologias sociais.
No entanto, buscar uma ética de justiça ambiental deve refletir também a superação das desigualdades sociais que fundamentam as injustiças. Os movimentos negros e quilombolas têm atuado para que o racismo ambiental seja reconhecido e enfrentado, compreendendo que atinge de diferentes maneiras uma grande parcela da população brasileira, cerca de 56% que se declara parda ou preta. Racismo ambiental é uma expressão cunhada para explicar por que determinados grupos populacionais estão mais expostos, ou são mais vulneráveis a injustiças sociais e ambientais.
O racismo ambiental, enquanto expressão de violação de direitos humanos, é reconhecido em processos discriminatórios presentes em políticas públicas, aplicação de leis e regulamentações, mas também em autorização de direcionamento de poluentes, aterros sanitários ou parques industriais que alteram as dinâmicas do território, comprometendo e arriscando as vidas das populações locais.
O rompimento da barragem de Mariana em 2015, por exemplo, foi responsável pela poluição do Rio Doce com rejeitos de mineração. Os impactos atingiram diretamente uma população 84% negra, de comunidades ribeirinhas, dentre eles o povo indígena Krenak, que perdeu seu modo de reprodução espiritual e de subsistência. A barragem de Brumadinho ao romper em 2019 foi responsável pela morte de 259 pessoas, desaparecimento de 11, e atingiu diretamente duas localidades, Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira, ambas com maioria de população negra.
Em outra direção, o ordenamento geográfico expõe as lógicas de injustiça que regulam os espaços urbanos, como as moradias precárias, a ausência de saneamento e de água tratada, falta de acesso à saúde e maiores tempos de deslocamento cotidiano. As chuvas em Pernambuco em maio de 2022 deixaram mais de 10 mil pessoas desabrigadas, mais de 132 mortes, em sua maioria, vítimas de deslizamentos de encostas, o que denunciou também a redução do orçamento para enfrentamento a desastres pela Confederação Nacional de Municípios –– já que 2022 teve o menor orçamento, considerando a inflação, desde 2010.
As comunidades quilombolas de Alcântara no Maranhão possuem uma história de violações de direitos humanos quanto ao seu direito ao território. A primeira remoção de 312 famílias em 1986 aconteceu sem qualquer consulta, ou garantia de preservação de seus modos de vida. A denúncia de violações aos direitos humanos levou o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (Corte IDH/OEA), em 2001. Este é um dos 621 conflitos envolvendo povos e comunidades publicizados e denunciados no Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil.
O racismo, enquanto dimensão da injustiça social, cria implicações negativas para as populações negras em sua expectativa de vida, acesso à saúde e alimentação, trabalho e educação, acesso à terra e água. As condições de vulnerabilidade da população negra fazem com que as consequências das mudanças climáticas sejam acentuadas sobre este grupo, tornando urgente entender as relações entre as questões ambientais, ecológicas e sociais para construir processos mais justos. O reconhecimento e visibilidade são aspectos reivindicados pelos povos e comunidades tradicionais, cuja atuação na proteção de florestas, manguezais, restingas, rios e bacias precisa ser fortalecida.
A justiça ambiental para a população negra, povos indígenas e comunidades tradicionais caminha de mãos dadas com uma busca por reconstrução democrática. A garantia de participação e a reestruturação de espaços e dinâmicas sociais que mantêm e alimentam condições discriminatórias precisam ser enfrentadas de forma coordenada e simultânea. A produção de justiça exige reconhecer os mecanismos que estruturam e mantêm injustiças, sendo necessária a escuta, o compromisso histórico com a mudança e o reconhecimento da luta dos povos e comunidades que, ao defenderem condições de justiça, estabelecem também modelos éticos solidários e sustentáveis para a nossa vida com o mundo.