Carimbó: uma história de amor e luta em Belém
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O carimbó, reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial Brasileiro desde 2014, é uma manifestação cultural do Pará que une dança e música com influências africanas e indígenas. Apesar da importância cultural, muitos personagens fundamentais ao carimbó vivem em condições de extrema vulnerabilidade. O mestre Ney Lima é um exemplo: ele e sua companheira dividem uma casa de um cômodo inacabado no Parque Amazônia, distrito de Icoaraci, com quatro filhos pequenos, e dependem do programa Bolsa Família. Enquanto lutam por sobrevivência, essas pessoas dedicam suas vidas a criar e manter o legado do carimbó, cuja produção valoriza os saberes afro-indígenas e a conexão, o respeito e a conservação da natureza.
Mestre Ney Lima: riqueza cultural ancestral do carimbó que contrasta com extrema pobreza
Entre sons e adversidades, o mestre de Icoaraci, distrito periférico de Belém, no Pará, que faz história compartilhando saberes e defendendo a cultura
Por Priscila Cobra

"Eu fico muito feliz de participar dessa página sendo escrita a cada dia no carimbó", declara Mestre Ney Lima, 44 anos, nome artístico de Waldinei Lima da Silva, reconhecido como Mestre de Carimbó no distrito de Icoaraci, em Belém, Pará. Ney dedica-se à música, compondo, tocando, ensinando e até fabricando instrumentos com materiais recicláveis, divulgando essa manifestação cultural há décadas.
Embora o carimbó seja reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial Brasileiro desde 2014, muitos mestres como Ney enfrentam condições de extrema vulnerabilidade. Ney e sua companheira, Andriele Barbosa dos Santos, 29 anos, dividem uma casa de um cômodo inacabado no Parque Amazônia, distrito de Icoaraci, com quatro filhos pequenos. A família depende do programa Bolsa Família e de "bicos" eventuais.
"A nossa renda base mesmo é apenas o Bolsa Família, às vezes tem um cachê básico, mas básico mesmo, algo em torno de cinquenta reais, quando não é de graça só por um lanche. Somos uma família de seis pessoas e a única garantia que temos é de uma remuneração menor que um salário mínimo", lamenta Andriele.

Além de tocar, Ney realiza diversos serviços: carrega entulho, ajuda em obras e coleta material reciclável para vender. “O bolsa família é uma vez no mês, as tocadas são imprevisíveis e temos muitas necessidades todos os dias dentro de casa”, explica Andriele.
Destinado aos inscritos no Cadastro Único, o Programa Bolsa Família beneficia famílias em situação de pobreza, caracterizado por uma renda per capita de até R$ 218. O cálculo da renda per capita é feito somando-se todos os rendimentos e atualização dos moradores de uma residência e dividindo-se o total pelo número de pessoas.
No caso de Andriele, beneficiária direta do programa, a renda per capita familiar é de R$ 200. Em 2024, o Brasil passou a considerar como extrema pobreza as famílias cuja renda per capita mensal é de até R$ 209. Dessa forma, Andriele e sua família vivem essa condição agravada por outros indicadores de baixa qualidade de vida, como ausência de emprego formal, moradia inacabada, filhos matriculados em escola pública, falta de plano de saúde e residência em área de ocupação com infraestrutura de saneamento precária.

Mestre Ney estudou até o segundo ano do ensino médio no Instituto de Educação do Estado do Pará (IEEP), instituição pública da cidade, e reside há mais de 15 anos no Parque Amazônia, subunidade do Parque Guajará, no distrito de Icoaraci, região periférica, lugar onde formou família com Andriele.
A família recentemente conseguiu o benefício do Cheque Moradia para ampliar a casa, mas o recurso cobriu apenas parte das necessidades. "Com a primeira parcela, levantamos paredes, e estamos aguardando a segunda parcela no mesmo valor. Mas o preço do material quando comprado no Cheque Moradia é sempre 10 ou 20% a mais do que em dinheiro”, explica Andriele.
Mesmo diante dessas adversidades, Ney e Andriele passam aos filhos o amor pela cultura. Todos tocam instrumentos, e o primogênito, Aroenã, sonha transformar a casa em um barracão de carimbó.

“Ele quer convidar os amigos dele pra ensaiar aqui, formar um grupo, também um espaço que seja atelier para o Ney produzir e guardar os instrumentos. Logo que cheguei aqui eu lembro que enchia de criança. O Ney ensinava a galera a fazer ‘filtro dos sonhos’. Todos os vizinhos jovens por aqui sabem tocar, passavam horas e horas tocando e aprendendo carimbó. Agora a galerinha cresceu”, conta Andriele.
A trajetória do mestre
Mestre Ney Lima iniciou seu percurso como músico popular na década de 90, no grupo Movimento de Adolescentes do Curió - Belém/PA. Participou também do grupo Paranativo do bairro do Bengui, grupo Pai d’Égua, e atualmente colabora com o Espaço Cultural Coisas de Negro, com o grupo ‘Carimbó de Icoaraci’, ‘Os Africanos de Icoaraci’ e ‘Os Falsos do Carimbó’.

Em 2008, Mestre Ney e o coletivo Sonora Iqoaraci ganharam primeiro lugar em um Festival de Carimbó interpretando a canção que, segundo ele, tinha sido desprezada por outros tocadores. “A gente saiu e foi para Santarém Novo (PA), para o ‘Fest Rimbó’ com o coletivo Sonora Iqoaraci, defender essa música e ganhamos em primeiro lugar”, relembra.
Atualmente, uma ampla parcela de pessoas que fazem do Carimbó Pau & Corda seu estilo de vida — como o próprio Mestre Ney sempre ensinou ao afirmar que “carimbó não é apenas um ritmo ou uma arte, é um estilo de vida” — enfrenta a ausência de políticas públicas, renda e dignidade para a preservação desse patrimônio cultural vivo.
Além disso, faltam mecanismos adequados para resguardar a rica memória daqueles que já partiram. Nos últimos cinco anos, praticamente não houve recursos destinados à prática dos saberes e fazeres de mestres, mestras e comunidades em seus territórios. Mesmo assim, Ney mantém viva a tradição e luta para passar o legado às futuras gerações.

Esta reportagem foi desenvolvida por meio da iniciativa Bolsa-Reportagem, parte da cooperação técnica entre a Vale e o Canal Futura, com o objetivo de fomentar a produção e amplificar o alcance de informações e conteúdos sobre o enfrentamento à pobreza extrema.