Dignidade menstrual na Cidade Operária em São Luís
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Na Cidade Operária, em São Luís (MA), o Coletivo Menina Cidadã trabalha pela dignidade menstrual de quem vive em situação de vulnerabilidade. O alto custo dos itens de higiene básica, como papel higiênico e absorventes, é um dos fatores que gera a pobreza menstrual e afeta a vida de muitas pessoas. Além do risco de infecções, essa privação de direitos leva, até, à evasão escolar. Segundo pesquisa, uma em cada quatro pessoas que menstruam deixam de ir à aula durante seu período menstrual. Nessa série de reportagens sobre a dignidade menstrual, conheceremos a importância de cuidados adequados para a população que menstrua, os desafios para a implementação de políticas públicas que garantam seus direitos e os impactos dessa realidade em toda a sociedade.
A luta por água, saneamento e dignidade menstrual em Cidade Operária, periferia de São Luís
Coletivo Menina Cidadã, formado por moradores locais, entram no combate pelo fim da pobreza menstrual e por demandas de infraestrutura da região
Por Ana Letícia Ferro e Linda Rodrigues

Tem dias que a gente fica sem água por tanto tempo que até tomar banho vira um desafio, imagina então quando estou menstruada,” conta a segurança Katiana Carvalho, moradora da Cidade Operária, bairro periférico de São Luís, no Maranhão.
Para ela e outras mulheres da comunidade, a falta de água e o acesso precário a absorventes formam uma combinação que agrava o desconforto e coloca a saúde em risco. “Já é difícil, aí vem essa luta pra conseguir manter a higiene básica,” desabafa.
A situação enfrentada por Katiana reflete um problema generalizado no Maranhão, onde apenas 56,62% da população, cerca de 3,8 milhões de habitantes, têm acesso regular à água potável, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) de 2022.
A Cidade Operária, também conhecida como C.O., é um território que, ao longo dos anos, precisou buscar saídas próprias para atender às necessidades de sua população, desenvolvendo-se quase como um organismo à parte, movido por ações internas e esforços coletivos diante da ausência do poder público.
No texto Entre as “Unidades” e as camadas do território da Cidade Operária, a moradora Elivânia Estrela, integrante da associação de moradores da região, comenta essa construção conjunta. ”Na ausência do poder público em um contexto que expressa a doutrina neoliberal, a construção social e física da Cidade Operária contou, em muitos momentos, com apoio de associações de moradores, ONG’s e organizações religiosas que tentam minimizar distintas lacunas vivenciadas pelos moradores desse território”, descreve.
A Cidade Operária é hoje uma macrorregião que abriga uma diversidade de comunidades e bairros menores, dividida em unidades, como as populares 101, 103, 201, 203 e 205. Cada uma dessas áreas enfrenta desafios próprios, mas comumente compartilham a luta por segurança, saneamento e infraestrutura básica.
“A 205 é a melhorzinha. Pra mim, que moro na 105, vivo com muita insegurança,” relata a estudante de contabilidade Júlia Leite, 20, moradora que ressalta as disparidades internas entre as unidades do bairro.
Para o estudante de jornalismo Ítalo Silva, 21, e também morador da C.O., o crescimento desordenado é um agravante. "Embora a Cidade Operária tenha sido planejada, todo o entorno foi crescendo de maneira muito desordenada, a grande maioria dos bairros adjacentes surgiu a partir de invasões, disputa de terra, sem infraestrutura adequada para receber seus moradores, um completo caos. Além disso, tem os problemas que são intrínsecos a uma periferia, educação de péssima qualidade, espaços de lazer vandalizados, postos de saúde superlotados", diz.
Para muitos moradores, a necessidade de autossuficiência se tornou uma realidade inevitável. O cenário local reflete como a comunidade tenta resolver os problemas de maneira interna, com apoio mútuo entre os moradores.
A escassez de água, por exemplo, é um problema que afeta a rotina diária e a saúde da população. Essa é uma questão que impacta diretamente a vida dos moradores da Cidade Operária, especialmente das mulheres. Katiana Carvalho, moradora da região, relata enfrentar períodos de escassez de água constantes.

"A gente fica assim, sem água entre três, quatro, cinco dias, depende do defeito da bomba. Não é um problema que a gente enfrenta diariamente, mas quando acontece, precisamos buscar ou comprar água para suprir as necessidades básicas, inclusive para beber e tomar banho. Eu, por exemplo, trabalho em escala de 12 por 36 horas, então, quando estou de folga, aproveito para pegar água para o banho e limpeza da casa”, diz Katiana.
A situação se torna mais complicada em momentos como o ciclo menstrual. "Inclusive nesse período agora que a gente tá passando por essa falta de água, eu tô no meu período menstrual, e além do sofrimento que a gente já passa, né? Toda mulher passa com dor de cólica, dor de cabeça, ainda tem que carregar a água, traz um pouco mais de sofrimento", relata.
Outro problema recorrente é a lotação nos postos de saúde, dificultando o acesso aos atendimentos básicos. Para adolescentes e jovens, a falta de sigilo médico torna o cenário ainda mais desafiador. Muitos evitam buscar ajuda para questões relacionadas à saúde íntima, como métodos contraceptivos e prevenção de infecções sexualmente transmissíveis, por medo de julgamentos e exposição pública.
Coletivo entra no combate
A garantia do sigilo médico é fundamental para que essas jovens possam acessar os cuidados necessários de forma segura e confidencial. O Coletivo Menina Cidadã trabalha para reverter essa realidade. O grupo busca garantir dignidade para os moradores da região, em especial os meninos e meninas.
“Uma vez, uma amiga foi ao posto de saúde para pedir orientação sobre preservativo, e espalharam no bairro que ela já tinha tido relações,” relata uma integrante do Coletivo. “Chegou até a mãe dela e deu a maior confusão. Desde então, a gente ficou com o pé atrás para falar alguma coisa e não ter o sigilo respeitado.”
Os integrantes do Coletivo contam que a falta de sigilo nos postos de saúde deixava as adolescentes em uma situação desconfortável, afastando-as do cuidado íntimo necessário e também de pegar itens distribuídos gratuitamente pelo medo do julgamento de vizinhos e conhecidos.

Em 2020, o Coletivo Menina Cidadã organizou um levantamento com 200 jovens da Cidade Operária, para entender as principais demandas desse público. O resultado foi a criação da Carta Demanda, um documento que reúne as "dores e insatisfações" das jovens, denunciando a "desigualdade social, falta de informações, feminicídio, educação precária, machismo patriarcal", entre outras questões que afetam o cotidiano da comunidade.
Entre as principais reivindicações, a Carta solicita melhorias nos serviços de saúde, incluindo maior acesso à saúde da mulher e à dignidade menstrual, bem como investimentos em educação e espaços públicos adequados.
Entre as bandeiras levantadas pelo Coletivo Menina Cidadã, a dignidade menstrual se destaca, evidenciando a importância de cuidados adequados para as jovens e mulheres da região. No entanto, segundo o Censo de 2022, os desafios em São Luís, especialmente em bairros como a Cidade Operária, continuam intensos: apenas 51,8% da população conta com esgotamento adequado, e mais de 2.324 habitantes vivem sem banheiros ou sanitários em casa.
No abastecimento de água, embora 68,1% dos moradores recebam água potável pela rede geral, ainda há 13.980 pessoas sem acesso direto à água encanada, dependendo de baldes e outros recursos para atender suas necessidades diárias.
A realidade evidencia a urgência de medidas que garantam direitos básicos à população. Enquanto isso, a atuação do Coletivo Menina Cidadã é essencial para conscientizar e apoiar os moradores. Contudo, mudanças estruturais só serão possíveis com políticas públicas efetivas que garantam saneamento, água potável e serviços de saúde de qualidade, promovendo dignidade para todos.
O que diz a Prefeitura?
A Semus (Secretaria Municipal de Saúde) diz que por meio da portaria GM/MS Nº 4.072, de 23 de novembro de 2022 que dispõe sobre as ações do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS, já realiza a distribuição de absorventes a mulheres em situação rua e em condições de extrema vulnerabilidade social, como parte das ações do programa Consultório na Rua; e para adolescentes internas que cumprem medidas socioeducativas.
Além disso, a Semus, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, informou que vai iniciar a entrega de absorventes às estudantes de baixa renda matriculadas em escolas públicas pactuadas na adesão ao Programa Saúde na Escola. Mas não precisou a data.

Sobre a situação do sigilo denunciado pelas moradoras do C.O., a secretaria diz que atualmente, todas as unidades básicas de saúde acolhem, de forma humanizada, as adolescentes e jovens assistidas pela Atenção Primária.
A pasta diz que como parte do planejamento das ações para as unidades básicas de saúde será implementada a estratégia UBS Amigáveis, com investimentos em capacitação permanente dos profissionais para qualificar ainda mais o acolhimento.
O que diz o Estado sobre a água
Em nota, a Caema (Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão) diz que a efetividade no sistema de abastecimento na Cidade Operária é feita por quatro poços tubulares profundos implantados dentro do complexo habitacional, garantindo água às 7.500 (sete mil e quinhentas) residências existentes no bairro. Conta, ainda, com o reforço de sete poços implantados em áreas adjacentes, que podem, em caso de intercorrências, impulsionar o fluxo de água para a região. Em casos extraordinários, a Cidade Operária pode, também, ser abastecida pelo Sistema Italuís.
A Caema informa, também, que o abastecimento no bairro é na sistemática de rodízio, uma medida adotada para reduzir os impactos ambientais nos mananciais, para evitar a redução da vazão de rios e para restabelecer o equilíbrio das reservas de água bruta e tratada.
E os absorventes
Sobre ação complementar aos programas municipais de dignidade menstrual, a gestão estadual disse que realiza ações transversais, como as caravanas realizadas pela Semu (Secretaria de Estado da Mulher) que levam palestras para o interior do estado, na qual orientam as mulheres a participarem do programa Fármacia Popular, para se cadastrarem e poderem buscar absorventes de forma gratuita.
O Governo do Maranhão, por meio da Seap (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária), afirma que deu mais um passo significativo na promoção de políticas públicas voltadas à dignidade e reinserção social. O estado foi um dos onze contemplados pelo Governo Federal, por meio da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais), com a doação de 40 máquinas para a produção de absorventes, dentro do Projeto “Dignidade Menstrual para Pessoas em Situação de Vulnerabilidade” (PROCAPMulheres).
A previsão é que, no início de 2025, as Pessoas Privadas de Liberdade (PPLs) do estado sejam capacitadas para operar os equipamentos, marcando o início da confecção dos absorventes. Com a produção em pleno funcionamento, a expectativa é que sejam produzidos mais de 15 mil absorventes higiênicos diariamente, atendendo tanto a demanda interna do sistema penitenciário quanto às necessidades da Administração Pública, viabilizando benefícios para a população maranhense.
Esta reportagem foi desenvolvida por meio da iniciativa Bolsa-Reportagem, parte da cooperação técnica entre a Vale e o Canal Futura, com o objetivo de fomentar a produção e amplificar o alcance de informações e conteúdos sobre o enfrentamento à pobreza extrema.
Júlia Nabete: transformação do silêncio sobre menstruação em diálogo e superação
Estudante de pedagogia da periferia de São Luís quer quebrar o ciclo de vergonha e desinformação para mudar realidade de outras mulheres
Por Ana Letícia Ferro e Linda Rodrigues
A primeira menstruação de Júlia Nabete, aos 13 anos, chegou marcada por surpresa e improviso. "Minha mãe me deu um pedaço de pano porque não tínhamos absorvente. Ela nunca tinha conversado comigo sobre isso. Aprendi na prática", lembra a jovem estudante de pedagogia, atualmente com 19 anos, moradora do bairro de Janaína, periferia de São Luís, no Maranhão.
Nascida na capital maranhense, em 2004, Júlia tinha apenas dois anos quando sua mãe, empregada doméstica, decidiu levá-la, com o irmão, para o interior, em um pequeno povoado chamado Kupu, no município de Viana. Lá, foi criada com avós e primos, entre roças e a quebra de coco babaçu como sustento, onde absorventes eram um luxo reservado para ocasiões especiais. Para o dia a dia, o pano era a solução.
Aos nove anos, Júlia e a família retornaram para São Luís, onde a realidade urbana se mostrou diferente, igualmente difícil. Mas um ponto de virada na história de Júlia sobre o tema, visto como algo vergonhoso e cercado de silêncios por gerações, teve início aos 16 anos. Ao ingressar em um coletivo de mulheres, ela começou a entender que a menstruação não era motivo de vergonha, e que o conhecimento sobre seu corpo era libertador.
A jovem absorveu tudo o que podia sobre o ciclo menstrual, saúde íntima e direitos da mulher, e transformou o conhecimento em uma ferramenta importante para reconstruir a relação da própria mãe com a menstruação. Entre elas, um novo vínculo surgiu, agora marcado por diálogos sinceros e a busca por melhores condições.

“Comecei a explicar para ela que não precisava ter vergonha, que havia formas de cuidar da gente com mais dignidade. Foi um momento de redescoberta, não só para mim, mas para nós duas”, conta Júlia, emocionada ao lembrar de como algo tão íntimo acabou unindo as duas.
Dignidade em meio à escassez
No entanto, os desafios financeiros continuaram. Júlia e a mãe, agora moradoras de Janaína, um bairro periférico da capital maranhense, enfrentam problemas diários com a falta de água. Dependentes de um poço comunitário, muitas vezes passam dias sem água, o que torna a higiene no período menstrual um verdadeiro desafio. “Às vezes, a bomba quebra e temos que economizar água. Em pleno ciclo menstrual, nem sempre conseguimos nos lavar direito. É muito angustiante”, descreveu.
Os absorventes gratuitos, que deveriam ser uma solução, são outro obstáculo. Segundo Júlia, o sistema do aplicativo que deveria facilitar o acesso aos produtos é falho e os absorventes oferecidos são de má qualidade, causando alergias e vazamentos.
"Eles não dão opção, e a gente acaba gastando o pouco que tem com absorvente", desabafa.
O orçamento doméstico é apertado. Filha de uma empregada doméstica e um pedreiro, Júlia, além de estudar pedagogia na faculdade Laboro, graças a uma bolsa da Fundação Justiça e Paz, faz bicos e dá aulas de reforço escolar para ajudar nas despesas.

Ela conta que a bolsa foi um alívio, mas também traz novos desafios. No primeiro ano, cobriu 100% do valor da faculdade. No segundo, caiu para 90%. No último ano, serão apenas 70%. Mesmo assim, ela se mantém firme no propósito de progredir e mudar outras histórias.
“Quero ser professora, quero mudar a realidade das crianças, levar a elas o que demorei tanto para entender: conhecimento é poder, e a gente pode transformar a nossa vida através dele”, diz.
Olhando para trás, Júlia reconhece a longa jornada que percorreu, cheia de percalços e vitórias. Da menina que usou um retalho de pano na primeira menstruação à jovem que luta para pagar a faculdade e sonha em mudar o mundo, sua história é um exemplo de resiliência.
“Não foi fácil, não é fácil, mas eu aprendi a lutar. Cada desafio me ensinou uma coisa: que a gente não pode desistir de sonhar. Quero ser a mudança que eu não tive quando era criança. Quero que outras meninas não passem pelo que passei. E sei que vou conseguir”.
Esta reportagem foi desenvolvida por meio da iniciativa Bolsa-Reportagem, parte da cooperação técnica entre a Vale e o Canal Futura, com o objetivo de fomentar a produção e amplificar o alcance de informações e conteúdos sobre o enfrentamento à pobreza extrema.