Recomposição de aprendizagem ainda tenta minimizar impactos da pandemia
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Como o processo de recomposição pode apoiar o desenvolvimento de estudantes prejudicados pela crise sanitária
Reforço escolar. Aulas no contraturno. Material didático extra. Possibilidades como essas estiveram na mente de gestores, educadores e estudantes que voltaram às salas de aula depois da pandemia de covid-19. Após cerca de dois anos do fim do isolamento social, as escolas puderam planejar novamente um período letivo completo que ganhou um novo desafio: recompor os aprendizados deixados para trás durante a crise sanitária.
Apesar de não ser uma novidade, o conceito de recomposição de aprendizagem se tornou ainda mais importante no cenário atual da educação mundial. Mesmo assim, muitos desconhecem o termo ou o associam ao processo de recuperação do ensino. Para o diretor escolar e professor de matemática, Fábio Marcelino, diferente da recuperação, em que o aluno já conhecia o conteúdo, a recomposição é uma metodologia que busca apresentar conhecimentos que estudantes já deveriam ter aprendido. “Na recomposição, o aluno não teve ou não se apropriou do conceito. Deve ser feito através de arranjos didáticos, processual, indo à frente e retornando”, explica. A implementação desse modelo, no entanto, passa pelas diferentes realidades de crianças e adolescentes brasileiros.
Os efeitos da defasagem no ensino
“Na aula online, eu prestava atenção, mas quando tinha muita coisa dentro de casa, muitas atividades, me atrapalhava. Na escola, aprendi bem melhor porque conseguia ficar bem focado.” Aluno do 8º ano de uma escola municipal em Maricá, no Rio de Janeiro, Henzo Rodrigues (13) viveu a difícil realidade, comum a muitos estudantes durante a pandemia, de passar meses sem aula, adaptar-se a uma nova metodologia com o ensino remoto e retornar à escola quase dois anos depois. Todo esse processo em uma das fases mais cruciais para o desenvolvimento de competências estudantis: o final do ensino fundamental. Seu pai, Enoque da Silva (46), acompanhou esse momento de perto e relata “a maior dificuldade foi a falta de contato com os outros alunos e os professores dentro da sala. Quando ele voltou, a estrutura da escola ainda era muito parecida, quase a mesma turma, então ajudou.”
No caso de Henzo, a escola seguiu um modelo de readaptação. Durante 2 meses, os estudantes poderiam assistir às aulas presencialmente, divididos em grupos menores, ou seguir com o plano remoto. Foram disponibilizados conteúdos extras, com provas periódicas para analisar o avanço do aprendizado. Passado esse tempo, os estudantes voltaram integralmente às salas ainda com as medidas preventivas necessárias, mas com a turma e a carga horária completas.
Atualmente, Henzo está na reta final dos conteúdos para ingressar no ensino médio. Apesar da melhora na dinâmica de aula e no ensino, as lacunas de um conhecimento que não foi bem fixado ainda são sentidas. O estudante teme que esses aprendizados possam fazer falta, mas busca seu desenvolvimento por conta própria e segue com entusiasmo na escola. “Acho que esse tempo fora da escola fez muita diferença, mas com o conteúdo deste ano a gente está aprendendo coisas novas que vão ajudar”, afirma.
A cerca de 92 km de Maricá, a ex-aluna do CIEP 117 Carlos Drummond de Andrade, em Nova Iguaçu, no Rio, Ana Carolina Vailaint (18), também enfrentou os problemas que o isolamento trouxe para estudantes do ensino médio durante a pandemia. A aluna aponta a falta de habilidade dos professores com os aplicativos utilizados para fazer o ensino à distância. “Muitas vezes eles consultavam os alunos para saber como compartilhar materiais e outras funções das plataformas de aula online. Atrasou o planejamento e as aulas pela dificuldade dos professores”, conta.
A jovem estudava em um colégio intercultural que oferece integração com os Estados Unidos. Por isso, tinha duas demandas principais com o retorno das atividades presenciais: a recomposição dos conteúdos do ensino médio, cruciais para realizar o vestibular, e de língua inglesa, que seriam base para a prova de certificação no idioma. “Para o conteúdo do ensino médio, não teve nenhum processo específico para recompor. Quando voltou para sala, não teve nenhuma dinâmica diferente para esse conteúdo. O diretor disse que pagaria um curso para recomposição do inglês e ajuda com a prova de certificação, mas não aconteceu”, lembra a estudante que destacou a grande diferença do aprendizado em inglês na sala de aula.
Antes do fechamento dessa matéria, o Futura tentou contato com a direção da escola para explicação sobre a ausência de recomposição de aprendizagem, mas não teve retorno. Em nota, a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro informou que não recebeu qualquer informação ou denúncia sobre a situação. A Seeduc ainda pontuou que “elaborou o projeto pedagógico RegresSeeduc para atender as necessidades de reforço escolar, com a oferta de materiais específicos, de forma remota, a fim de recuperar a aprendizagem dos alunos concluintes do Ensino Médio em 2020 e os discentes que estavam cursando a última série/módulo do Ensino Médio de todas as modalidades em 2021”.
Ana Carolina contou com uma rotina própria de estudos para manter uma boa evolução até o vestibular. Os tão desejados resultados foram alcançados: conclusão do ensino médio com certificação em inglês e aprovação no Enem. Hoje, Ana é aluna de turismo na Universidade Federal Fluminense, mas mesmo com o sucesso acadêmico, a falta de experiências no ambiente escolar ainda é uma marca sentida não só por ela, mas pelos vários estudantes que ainda tentam se recuperar de um período tão difícil para o sistema educacional.
Caminhos para a recomposição
Os gargalos educacionais deixados pela pandemia também foram sentidos na fase de alfabetização. De acordo com pesquisa do IBGE divulgada pela organização Todos Pela Educação, 40,8% das crianças brasileiras entre 6 e 7 anos não sabiam ler e escrever em 2021, o que equivale a 2,367 milhões de pessoas. Os altos índices se estendem a idosos – pessoas com 60 anos ou mais –, pretos e pardos, e na região Nordeste, com destaque para Piauí, Alagoas e Paraíba, estados com as maiores taxas nacionais respectivamente.
Dados como esses mostram a defasagem do ensino, principalmente no período pandêmico, e o agravamento de outras falhas já existentes no sistema educacional. O Instituto Reúna criou um conjunto de ações apoiando o planejamento de um currículo que estruture uma avaliação diagnóstica da defasagem dos estudantes, permita o acesso aos materiais didáticos necessários e auxilie a priorização curricular.
Buscando diminuir os déficits de aprendizagem, a instituição disponibilizou materiais didáticos e elaborou mapas de foco que, segundo a diretora-executiva e porta-voz Katia Smole, “dão orientação para as redes (de ensino) de como escolher o que vai ser trabalhado. Depois, ajudam a orientar a organização dos currículos, como formar professores e programar as aulas.” Kátia, que foi secretária da Educação Básica do MEC, ainda aponta que a principal dificuldade para constituir os mapas foi determinar critérios de priorização para os conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e manter todos os assuntos primordiais para sequência dos anos letivos.
Parte dos 6% dos municípios brasileiros onde essas ferramentas já foram utilizadas está em Minas Gerais. A professora de matemática de escolas públicas do estado, Pricilla Cerqueira, conta a estratégia usada para recomposição. “Foi necessária uma flexibilização do currículo. Primeiro, fazer uma avaliação diagnóstica para definir os pontos de partida com base nos níveis de aprendizado dos alunos. Depois, priorizar os conteúdos essenciais, as bases mais importantes para cada série olhando também para séries anteriores”, explica. Para a educadora, apesar da falta de uma orientação com base nacional, o modelo de flexibilização tem sido positivo, mostrando exemplos de avanço em estados como Piauí, Pernambuco, Ceará e Paraná.