Notícia: Pessoas com deficiência representam menos de 1% dos aprendizes no país

Compartilhar

No Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência, 21 de setembro, atores da aprendizagem profissional apresentam os desafios para inclusão de PCDs no mercado de trabalho

Uma mulher sorridente, com cabelo curto, camisa branca com a estampa de 25 anos e calça preta, posa ao lado de um letreiro grande. O letreiro forma a palavra "Insper" em letras maiúsculas, com as letras "I" e "r" em branco, e as demais em vermelho. O letreiro está sobre uma base preta em um chão de pedriscos.
Márcia Anjos, de 53 anos, foi efetivada após período como aprendiz. Foto: Arquivo pessoal.

“Voltar a trabalhar mudou minha vida. Melhorou a rotina, a alimentação, até o sono. Eu estava cansada de me sentir ‘incapacitada’. Sempre que eu pegava um documento, esse termo aparecia”, conta Márcia Anjos, de 53 anos, moradora do Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Após 18 anos afastada do serviço, ela retornou ao mercado de trabalho como aprendiz. Ao fim do contrato, foi efetivada pela empresa, onde já trabalha há três anos. Além do emprego, neste ano ela também iniciou um curso de ensino superior. 

Quando começou, Márcia pensava que a aprendizagem profissional era destinada apenas aos jovens, mas descobriu que pessoas com deficiência, como ela, também podem ingressar no mercado de trabalho nessa modalidade. A Lei da Aprendizagem garante a inserção no mercado de trabalho a jovens entre 14 e 24 anos e, para as pessoas com deficiência, não há limite de idade. “Eu nem sabia que tinha esse direito”, lembra. Para ela, a falta de informação sobre os mecanismos de inclusão produtiva para pessoas com deficiência é uma das barreiras.  

O Brasil tem cerca de 14,4 milhões de pessoas com alguma deficiência e 2,4 milhões com autismo, de acordo com o Censo do IBGE (2022). Trata-se de um grupo expressivo da população que, aos poucos, conquista mais espaço no mercado de trabalho, embora ainda haja um longo caminho até a plena equidade. 

Na modalidade de aprendizagem profissional, o país registrou, em julho, aproximadamente 675 mil vínculos ativos. Desse total, apenas 4.224 eram de pessoas com deficiência — o que representa 0,63% dos aprendizes em atividade no país. A informação é do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). 

Ingressar no mercado de trabalho como aprendiz fez muita diferença para Márcia. “Eu me senti protegida”, resume. Sua rotina era dividida entre quatro dias na empresa e um na instituição formadora. Na sala de aula, junto à instrutora e aos colegas, podia compartilhar angústias e dificuldades — um espaço de aprendizado profissional, mas também de apoio emocional. 

“Eu trabalhava quando adoeci. Sai para ficar 30 dias afastada e me recuperar, mas isso não aconteceu. Fui recebendo alguns diagnósticos: transtorno bipolar, depressão, síndrome do pânico. Tudo isso foi me afastando até o ponto de não retornar mais”, conta Márcia. Ela diz que precisou de tempo para lidar com a nova situação e para deixar de lado a vergonha de se reconhecer como uma pessoa com deficiência. “Quando voltei a trabalhar, me senti muito perdida e eu falava que não ia conseguir. Eu tinha certeza. Eu conversava muito com a professora e isso foi me ajudando”. 

A professora mencionada por Márcia é Elaine Fuzaro, instrutora de aprendizagem há 15 anos. Ela destaca a importância do programa. “Trabalhar com aprendizagem é muito enriquecedor, especialmente quando se trata de pessoas com deficiência. Muitas vezes, elas não têm perspectiva no mercado de trabalho e, quando surge uma oportunidade, abraçam com muito empenho. Mas não é só pelo trabalho, a aprendizagem também possibilita socializar em um ambiente que respeita suas singularidades. Isso faz muita diferença para o bem-estar e para a autoestima”, avalia. 

Manuella Tavares, da área de Desenvolvimento Institucional da Fundação Roberto Marinho, explica que, nesse modelo de contratação, a pessoa é inserida de forma assistida, o que favorece sua adaptação: “A Lei da Aprendizagem amplia as oportunidades para pessoas com deficiência ao assegurar o direito de ingressar como aprendizes, independentemente da idade, ampliando o acesso ao mercado de trabalho. A formação teórica aliada à prática nas empresas garante acompanhamento e apoio no ambiente profissional”. 

A supervisora de inclusão produtiva da Fundação Roberto Marinho, Alzira Silva, complementa: “Para as pessoas com deficiência, a aprendizagem profissional é um caminho estratégico de inclusão. Os contratos devem considerar o desenvolvimento físico, psicológico e social dos aprendizes, prevendo adaptações pedagógicas, tecnológicas e de jornada que garantam acessibilidade e condições dignas de participação”. 

O desafio de ampliar as oportunidades 

Ana Flávia Freitas conseguia contar nos dedos quantos aprendizes com deficiência havia acompanhado ao longo de quase uma década de atuação na aprendizagem profissional. O cenário mudou quando chegou à Ser Especial, instituição de São Paulo voltada à formação e inclusão produtiva de pessoas com deficiência. A entidade integra a Coalizão Aprendiz Legal, aliança nacional liderada pela Fundação Roberto Marinho, por meio do programa Aprendiz Legal, com o objetivo de democratizar, ampliar e qualificar o acesso à aprendizagem profissional em todo o Brasil.  

Uma mulher de cabelo escuro, na altura do ombro, e óculos de grau, sentada em uma mesa de escritório. Ela usa uma blusa azul-marinho e está olhando diretamente para a câmera, com um sorriso leve. No fundo, há dois monitores de computador ligados, e um copo térmico sobre a mesa.
Ana Flávia Freitas trabalha como gerente de programas de inclusão da Ser Especial. Foto: Arquivo Pessoal.

“A Coalizão tem atuado para fortalecer a inclusão de pessoas com deficiência, promovendo diálogo com organizações experientes e compartilhando boas práticas. Nosso foco é desenvolver formações específicas, adaptar materiais e capacitar instrutores no uso de tecnologias assistivas, para que a aprendizagem profissional seja, de fato, uma oportunidade concreta de formação e trabalho decente para esse público”, ressalta Alzira Silva. Em um ano, 96 instituições formadoras aderiram à Coalizão. Com isso, elas passam a acessar formações, a metodologia e os materiais do programa Aprendiz Legal. 

Segundo Ana Flávia, a diversidade etária ainda é um desafio para ampliar o número de aprendizes com deficiência, porque muitas pessoas que poderiam acessar a política desconhecem essa possibilidade. “A gente costuma ver por aí o termo ‘jovem aprendiz’, e até mesmo apenas ‘aprendiz’ já remete a alguém mais novo, em início de carreira. Nós buscamos reforçar que essa oportunidade também está disponível para o público adulto com deficiência”, explica a gerente de programas de inclusão da Ser Especial. 

Outro obstáculo, acrescenta, é a necessidade de mudar a cultura das empresas contratantes, que frequentemente priorizam aprendizes mais jovens ao abrir vagas destinadas a pessoas com deficiência. 

Para Ana Flávia, a principal barreira está na abertura de vagas para pessoas com deficiência. Segundo ela, é necessário sensibilizar gestores e organizações para superar o receio de contratar esse público, além de aprimorar os mecanismos legais já existentes. “Hoje, a empresa precisa cumprir uma cota de contratação de pessoas com deficiência e, ao mesmo tempo, garantir um percentual de aprendizes em seu quadro. Mas essas duas leis não se sobrepõem. Na prática, se a empresa contrata um aprendiz com deficiência, essa vaga não conta para o cumprimento da cota. Assim, diante da escolha, muitas acabam optando por aprendizes sem deficiência”, explica. 

Na visão de Ana Flávia, a aprendizagem poderia funcionar como um espaço de adaptação tanto para aprendizes quanto para empresas, além de ser uma oportunidade para que os contratantes formem futuros profissionais de acordo com as demandas e a cultura da organização. “Se eu contrato um aprendiz com deficiência e dá certo, posso efetivá-lo. Assim, passo a cumprir a cota legal e ainda contrato um funcionário já preparado e alinhado à cultura da empresa”, resume. 
 
A partir da experiência de duas décadas no programa Aprendiz Legal, Alzira Silva destaca que, para que a aprendizagem cumpra plenamente seu papel inclusivo, é preciso avançar em diferentes frentes. Entre elas, ela enumera: fiscalização efetiva do cumprimento das cotas; incentivos para organizações que superarem metas de inclusão; parcerias intersetoriais para reduzir barreiras logísticas; e campanhas de sensibilização para combater estigmas e preconceitos no ambiente de trabalho.  

“Desse modo, a aprendizagem profissional pode se consolidar como uma política estruturante de inclusão das pessoas com deficiência, indo além do cumprimento formal de cotas e se transformando em porta de entrada para trajetórias de formação, trabalho decente e cidadania plena”, conclui a supervisora de inclusão produtiva da Fundação Roberto Marinho. 

Sobre a Coalizão Aprendiz Legal  

Lançada em 2024, a Coalizão Aprendiz Legal é uma iniciativa voltada à inclusão produtiva das juventudes, por meio do fortalecimento da política pública de Aprendizagem Profissional em todo o Brasil. A proposta da Coalizão é compartilhar, de forma gratuita e em rede, a tecnologia socioeducacional da Metodologia Aprendiz Legal com pequenas e médias entidades qualificadoras da aprendizagem profissional, ampliando o alcance e a qualidade da oferta educativa. Embora a Metodologia Aprendiz Legal seja implementada desde 2005, a Coalizão representa uma nova etapa de expansão, marcada pelo compromisso com a colaboração, a capilaridade e a excelência na formação profissional de adolescentes e jovens em todo o território nacional.